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Um filme sobre o fim da liberdade romani
A história de uma família roma que foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial
Lançado em 2009, Korkoro, palavra romani que significa sozinho, é um filme do cineasta franco-argelino Tony Gatlif que retrata a realidade de uma família roma que perdeu a liberdade enquanto viajava pelo interior da França em 1943, quando o país estava sob o domínio Vichy.
Logo no início, a música, a paisagem bucólica e o lirismo introduzem o espectador a uma cena em que as notas de um piano são representadas pela movimentação de arames farpados em paralelo. A princípio, a única perspectiva real que se tem é de um primeiro plano enuviado pelas incertezas de não sabermos o que há antes e depois daquela divisa. É um prólogo referencial do estilo de vida nômade.
Tony Gatlif apresenta uma família romani composta por pessoas de personalidades bem distintas, mas que carregam na essência algumas afinidades que envolvem companheirismo, abnegação, hospitalidade, amor à música, fé e desapego material. Não é uma obra que se limita a combater estereótipos ou simplesmente construir uma imagem bonita sobre a cultura cigana. É bem mais do que isso. Em alguns casos, Gatlif ironiza os clichês justamente para reforçar uma ideia ou parodiar um pensamento comum obtuso.
Em uma das viagens, o cigano Taloche (James Thiérrée) percebe que estão sendo seguidos por um garoto – Claude (Mathias Laliberté). Sem família, o menino se junta a eles. Durante o percurso, colocam saquinhos de estopa nas patas dos cavalos para não deixarem rastros. Quando chegam a um vilarejo, onde montam acampamento, são informados de que o nomadismo está proibido em todo o território francês, sob pena de prisão.
Então uma professora, Mademoiselle Lundi (Marie-Josée Croze) – partisan, integrante da resistência francesa, sugere que eles parem de viajar até o fim da guerra. Por ora, continuam no local, embora não tenham planos de fixar residência. Na escolinha, um dos estudantes comenta com Claude, a quem Taloche chama ironicamente de Chororo (garoto pobre), que os romani roubam crianças. Admirador dos ciganos, o ignora.
O filme é pautado por muita música do início ao fim, corroborando a ideia de que não há vida sem música no mundo roma. Bem comunicativos, os ciganos vão até o centro comercial do vilarejo vender produtos e oferecer serviços. Na tentativa de ganhar algum dinheiro consertando panelas, Taloche diz em tom bem humorado: “Todos têm utensílios com buracos em casa, o que acontece é que às vezes os buracos estão escondidos.”
Em uma cena, o médico veterinário e prefeito do vilarejo, Théodore Rosier (Marc Lavoine), socorre um dos cavalos do acampamento na ausência dos ciganos. Por azar, Rosier é mordido pelo animal e cai com o braço ensanguentado. Pouco tempo depois, chegam para socorrê-lo. Enquanto uns cuidam de seu ferimento, outros prestam atendimento ao equino. Movidos pela fé, tradição e superstição, tratam do braço do veterinário com uma pasta de estrume e um ovo cru. Ao mesmo tempo, oram pelo cavalo caído que em um rompante se levanta como se jamais tivesse adoecido.
Mais tarde, Rosier, o prefeito que deu abrigo a petit Claude, evitando que os ciganos tivessem problemas por terem entre os seus um jovem de origem desconhecida, pede ao garoto para perguntar qual foi o remédio usado em seu tratamento. “Foi estrume de cavalo. Mas diga a ele que até uma vassoura pode lançar fogo se for o desejo de Deus”, enfatiza um dos roma.
É profunda a relação dos ciganos com os animais. Em outra situação, a família toca uma canção festiva para elevar o ânimo de dezenas de galinhas poedeiras. No filme, a música ajuda a superar muitos problemas – um recurso que manifesta uma liberdade frugal.
Em contraste ao paisagismo rústico, Gatlif parte de uma condição coletiva para a individual quando aborda o lirismo de Taloche, personagem cuja inocência, aparente dislexia e hiperatividade, parece experimentar um incessante conflito existencial. Há uma exaltação da hipersensibilidade do cigano que destoa da idade e, por vezes, remete ao humor pastelão dos tempos do cinema mudo.
Mas não há nada mais bem representado em Korkoro do que a necessidade de liberdade, até nas cenas mais simples. Outro momento inesquecível surge quando Taloche vai até a casa de Rosier. No banheiro, ele se inebria com a água que sai da torneira. Enche a pia e a faz deslizar por todo o cômodo, como se a conduzisse à emancipação. Quando a água desce em abundância, Taloche se lança escada abaixo, sem o menor temor de se ferir.
O filme assume um caráter documental em algumas cenas-chave. Traídos pelo amigo Pierre Pentecôte (Carlo Brandt), um simpatizante dos nazistas, a família é levada para um campo de concentração, onde há centenas de romani. Lá, Darko (Arben Bajraktaraj) pergunta a Pentecôte por que estavam trancando eles como cachorros. O traidor então responde: “Para livrar a França de seus vermes.”
Ao saberem o que houve, Rosier e Mademoiselle Lundi decidem intervir. O prefeito transfere a escritura de uma propriedade familiar para o patriarca roma. Em seguida, os dois vão até o campo de concentração e apresentam o documento, obrigando que a família seja libertada. Quando retornam ao vilarejo, os ciganos se surpreendem com a nova morada. Alguns concordam em viver provisoriamente no local, já outros preferem partir. No fim, prevalece a decisão do patriarca que considera mais prudente continuar no povoado.
Taloche é o último a entrar na casa. Para ele, a ideia de viver entre paredes é uma forma de privação, embora não manifeste isso com palavras. Dias depois, Rosier os visita e encontra a propriedade abandonada. Novamente na estrada, rumam para a Bélgica, acompanhados mais uma vez por Claude. Não chegam tão longe. São surpreendidos pelos homens do Governo Vichy, a serviço dos nazistas.
Enquanto são obrigados a formarem uma fila e apresentarem registros de identificação, Taloche se esconde embaixo de uma carroça. O arrastam, mas ele estapeia o líder da operação – uma versão de Adolf Hitler, em uma cena caricata digna de Charlie Chaplin. Foge em direção à floresta e sobe em uma árvore enorme. É alvejado a tiros, até que numa queda poética e acrobática cai sobre um córrego. Deitado, mas ainda vivo, é vítima de um tiro certeiro na testa.
A morte de Taloche simboliza o fim da liberdade romani e a iminência do Porajmos, o genocídio cigano perpetrado na Segunda Guerra Mundial. O desespero da família é geral, mas, apesar dos prantos, nada pode ser feito diante de tantos homens armados. O corpo é abandonado, assim como os animais, as carroças e os pertences. Dali, não levam nada. Um longo tempo passa em questão de segundos. Aquela família não retorna mais. Em uma cena estática, tudo se esvai: o som, o fogo, a fumaça, a luz e a vida.
É muito interessante o cuidado que Tony Gatlif teve aos detalhes das expressões e particularidades de alguns personagens, embora talvez fosse mais impactante tornar outros romani da obra igualmente menos anônimos. De qualquer modo, fica clara a intenção de não deixar o individual, por mais peculiar que seja, se sobressair ao coletivo. O cineasta não tem intenção de se aprofundar na guerra. O foco é outro. É um filme sobre pessoas tentando exercer o direito de existir, não apenas habitar o mundo. Há uma bela construção do espaço em profundidade.
Korkoro se divide em dois ritmos. Onde existe alegria, há movimento e velocidade. Onde há tristeza, prevalece a lentidão de retratos quase estáticos das agruras de um tempo nefasto. Outro diferencial é a trilha sonora sempre pontual, um belíssimo trabalho capitaneado por Gatlif e a compositora Delphine Mantoulet.
Tony Gatlif é um dos poucos cineastas que se dedica a produzir obras que evidenciam ou flertam com a cultura romani. Como autor de filmes de longa-metragem, o primeiro grande destaque surgiu com Latcho Drom, de 1993; seguido por Mondo (1995), Gadjo Dillo (1997), Je Suis Né D’une Cigogne (1998), Vengo (2000), Swing (2001), Exils (2004), Transylvania (2006), Korkoro (2009) e Indignados (2012). Vale a pena se aprofundar um pouco mais na filmografia desse autor de origem roma.
Saiba Mais
Não há dados precisos, mas acredita-se que de 250 a 500 mil ciganos foram assassinados pelos nazistas até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Curiosidades
Korkoro é baseado em uma história real. A professora Lundi é inspirada na combatente da resistência Yvette Lundi.
James Thiérrée que interpreta Taloche é filho de Victoria Chaplin e neto de Charlie Chaplin.
Quando Paranavaí superou Maringá
Paranavaí quase se tornou a “terceira capital do Paraná”
A partir de 1946, a colonização na região de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, ganhou tanta força que anos depois superou as regiões de Maringá e Umuarama. À época, o que contribuiu para o desenvolvimento local foi o trabalho das colonizadoras de capital privado.
Hoje em dia, o que a população mais jovem de Paranavaí não sabe é que a cidade já foi um dos destaques do Paraná, se tratando de povoamento e desenvolvimento. De acordo com dados do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), a região de Paranavaí somou 90 milhões de pés de café antes do final da década de 1950, uma marca que deu visibilidade nacional ao Noroeste Paranaense.
Tudo começou nos anos 1930, quando a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) teve a concessão das terras de Paranavaí revogada pelo Governo Getúlio Vargas. Naquele tempo, muitos investidores se interessaram pela região considerada ideal para a cafeicultura em função das grandes áreas de solo virgem. Um dos colonizadores que apostou no progresso do Noroeste do Paraná foi o engenheiro Francisco Beltrão, da Sociedade Técnica Engenheiro Beltrão, que começou a comercializar lotes da Colônia Paranavaí em 1946.
O interesse de Beltrão pela região surgiu bem antes, no final da década de 1930, porém, só recebeu o aval do Ministério da Justiça em 14 de dezembro de 1943. Depois ainda teve de aguardar a expedição do título de propriedade liberado pelo Ministério da Agricultura em junho de 1946, segundo informações do livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva.
Todos os documentos diziam respeito a compra de 17 mil hectares de terras que até então pertenciam ao Governo Federal em área próxima as propriedades da Companhia Norte do Paraná. Boa parte das posses do engenheiro na região de Paranavaí se situava em áreas que mais tarde se tornariam o município de Tamboara, Seara, Suruquá e Anhumaí.
Na década de 1950, foi a vez de pioneiros como Carlos Antônio Franchello e Enio Pipino, da Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (Sinop), apostarem no progresso da região de Paranavaí. Franchello investiu na Gleba 27-A, da Colônia Paranavaí, que se tornaria Querência do Norte, e Pipino no povoado que deu origem a Terra Rica. Na região, as colonizadoras se comprometiam a elevar a economia, proporcionar mais qualidade de vida e de sociabilidade, além das promessas de construção de escolas, unidades de saúde, igrejas e melhores vias de acesso e tráfego.
As campanhas publicitárias veiculadas por todo o Brasil, mas principalmente em cidades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, surtiram tanto efeito que em Paranavaí foram vendidos milhares de imóveis entre lotes urbanos, chácaras e sítios. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), isso justificou os 307 mil habitantes da região de Paranavaí em 1960. “A terra era barata e os lotes rurais eram grandes, então todo mundo que vinha pra Paranavaí ou trazia dinheiro para comprar um imóvel ou logo arrumava um serviço pra adquirir uma propriedade o mais rápido possível”, comentou o pioneiro catarinense José Matias Alencar, complementando que parecia a “Corrida do ouro na Califórnia”, tão grande era o fluxo de pessoas na cidade.
Muitos moradores diziam que Paranavaí tinha tudo para ser a “terceira capital do Paraná”, logo atrás de Curitiba e Londrina. Os habitantes se baseavam no fato de que a região de Maringá somava 237 mil habitantes e a de Umuarama cerca de 253 mil, conforme registros do IBGE. Em 1960, com exceção de Curitiba, se tratando de desenvolvimento, Paranavaí só perdeu para a região de Londrina que chegou aos 600 mil moradores.
Curiosidade
Até o início da década de 1950, Paranavaí somava 45 mil hectares, subdivididos em Gleba-1, Gleba-2 e Gleba-3.
Demarcação da Brasileira foi feita a pé
Primeiras vias de Paranavaí foram demarcadas em 1942
Quem vê hoje as ruas, avenidas e estradas de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, nem imagina que toda a área foi demarcada a pé, sem auxílio de qualquer meio de transporte. Tudo começou no início dos anos 1940, quando a colônia ainda era conhecida como Fazenda Brasileira.
Em 1942, Ulisses Faria Bandeira, funcionário da Inspetoria de Terras do Governo do Paraná, dirigida por Francisco de Almeida Faria, foi transferido de Londrina à Fazenda Brasileira para demarcar a primeira via da colônia, a Avenida Paraná. O trabalho de Bandeira teve relação direta com a chegada de migrantes.
Aparentemente, a demarcação simbolizava o interesse do Governo do Paraná em investir no desenvolvimento do povoado, o que atrairia a atenção dos migrantes que por aqui passavam. A estratégia deu certo e em setembro de 1943 muitas pessoas chegaram ao povoado.
Naquele tempo, atrair quem buscava melhores condições de vida era uma tarefa complicada, pois o acesso a Paranavaí era tão precário que nenhum caminhoneiro de Londrina [cidade por onde passavam os muitos migrantes que vieram para cá] aceitava realizar um frete até a Brasileira por menos de 1,5 mil cruzeiros, preço muito elevado se comparado a outros destinos.
Ainda assim, muitos insistiam na viagem, pagavam o que fosse para chegar ao povoado do qual se ouvia falar muito bem em Londrina. Mas como a propaganda sempre supera a realidade, a verdade é que a Brasileira era bem desorganizada, se resumia a um amontoado de pessoas de diferentes etnias dispersas por todos os lados. “Quando cheguei aqui só a Gleba 1-A tinha sido demarcada, um trabalho do engenheiro Alberto Gineste”, lembrou o pioneiro Ulisses Faria Bandeira em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.
Em 1942, já não havia mais casas disponíveis. As que restaram da época do Distrito de Montoya [nome de Paranavaí até 1930] foram desmanchadas e realocadas em outras áreas. Por muitas vezes, os colonos pensaram em ir para o mato derrubar árvores para aproveitar a madeira. Porém, ninguém na colônia tinha equipamento e veículo necessário para o serviço. “A madeira ainda era trazida de Marialva [no Norte Central Paranaense], então sugeri a construção de uma serraria”, relatou Bandeira.
“Só achei os primeiros colonos a vinte quilômetros”
Aos poucos, a Fazenda Brasileira ganhou contornos de cidade, graças ao empenho do inspetor Ulisses Faria e do administrador da colônia, Hugo Doubek, que fizeram o trabalho de demarcação territorial a pé, tendo como referência a localização de todos os moradores do povoado. “Recebi a ordem para achar toda aquela gente, obedecendo certa metragem que margeava córregos e rios. Foi tudo feito sem condução, e só achei os primeiros colonos a vinte quilômetros da Inspetoria de Terras”, destacou Doubek em entrevista à Prefeitura de Paranavaí há algumas décadas.
Em 1944, a Gleba 1-A, ocupada principalmente por paulistas, mineiros, cearenses e pernambucanos, já somava 30 quilômetros de estrada que a ligavam a Paranavaí. Em uma antiga entrevista ao jornalista Saul Bogoni, Bandeira revelou que havia inúmeras colônias em Paranavaí porque muitos pioneiros chegaram antes de 1940, o que foi percebido somente durante o trabalho de campo.
A Gleba 2 foi a única área da Brasileira não demarcada por Doubek e Bandeira. Quem se encarregou do trabalho em janeiro de 1944 foram os engenheiros Artur Oliva e Lota Chimoca que percorreram área superior a 15 mil alqueires, onde ainda havia muita vegetação primitiva. “A Gleba 2 tinha como ponto de partida a estrada que vai para o Porto São José”, salientou Ulisses Faria que naquele ano tomou a iniciativa de investir no abastecimento de água. Bandeira conseguiu uma bomba com motor a gás para fazer a captação. A ideia beneficiou mais de cem famílias.
Curiosidade
Um registro de propriedade da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) prova que Paranavaí já era habitada em 1910, à época a região era chamada de “Pirapó”.