David Arioch – Jornalismo Cultural

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Uma vida dedicada ao próximo

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Na infância, Rosinha percorria até 20 quilômetros a pé com o pai para rezar pelos enfermos

Dona Rosinha: “Desde que nasci meu pai já orava pelos outros e fazia caridade. Vem de geração em geração” (Foto: David Arioch)

Dona Rosinha: “Desde que nasci meu pai já orava pelos outros e fazia caridade. Vem de geração em geração” (Foto: David Arioch)

Chego na casa de Dona Rosinha no Jardim Ipê, como é mais conhecida Rosa Ferreira dos Santos, e o seu marido, o vigilante Cido Dias dos Santos, pede que eu entre. Sem cerimônia, diz que ela já está me aguardando. Quando me vê, a dona de casa exibe um sorriso largo e singelo e me convida para sentar em um sofá na sala.

Miudinha e ansiosa pela entrevista, Rosinha tem uma rara força e resistência, o que ela atribui à fé religiosa. Procurada toda semana por pessoas que desejam algum tipo de graça, a dona de casa diz que não é benzedeira, mas sim rezadora. “O povo chega aqui e pede pra eu rezar. Meu trabalho pra ajudar quem precisa é baseado em três orações: ‘Pai Nosso’, ‘Creio em Deus-Pai’ e ‘Salve Rainha’. São as mais fortes pra gente”, afirma.

Além de orações, muitos são atraídos pelos seus remédios caseiros para dores nas costas, gripe e bronquite, feitos há 16 e 20 anos. “Quando acontece de não vir quase ninguém numa semana eu já fico preocupada, me perguntando se minha oração ainda está ajudando. Mas depois o número de visitas aumenta e fico feliz”, comenta com simplicidade.

A cultura da oração entrou na família de Rosinha com os bisavós e desde então a família segue a tradição de ajudar quem precisa, independente de classe social. “Desde que nasci meu pai já orava pelos outros e fazia caridade. Vem de geração em geração. As pessoas me procuram bastante por motivos de doença e também pra passar em algum tipo de concurso. Muita gente já me ligou agradecendo depois. Só não sei é a minha fé que é mais forte ou a fé deles em mim”, declara sorrindo.

Ainda criança, e vivendo em um cenário que lembra a atmosfera mística do filme “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, Rosinha e os sete irmãos acompanhavam o pai em caminhadas de até 20 quilômetros para levar orações àqueles que já não podiam frequentar uma igreja, principalmente por problemas de saúde. Quando chegavam ao local, o pai e os filhos rodeavam o enfermo e oravam por horas.

“Ele era rezador de terço igual eu sou agora. Foi a herança que me deixou. Lembro que íamos tão longe que às vezes até dormíamos na beira da estrada. Meu pai e os filhos mais velhos carregavam os menores nas costas. Nunca foi homem de sair e deixar a família abandonada em casa”, destaca.

"Faço exatamente como meu pai me ensinou” (Foto: David Arioch)

“Faço exatamente como meu pai me ensinou” (Foto: David Arioch)

O relato remete aos anos 1960 e início dos anos 1970, quando a família de Rosinha vivia em cidades como São Jorge do Patrocínio, Pérola, Altônia e Rondon, nas regiões de Umuarama e Cianorte. “Morávamos em um canto, daí passava um tempo e a gente mudava, até que ficamos na residência do meu tio em São Jorge do Patrocínio. Depois arrumamos uma casa e começamos a trabalhar como boia-fria nos cafezais. O serviço mais perto exigia pelo menos quatro quilômetros de caminhada”, conta.

Após o falecimento do pai, há quase 20 anos, Rosinha continuou a tradição familiar, inclusive o trabalho de aplicar injeções em enfermos, algo que aprendeu na juventude, numa época de grande carência médica. “Quando um doente não pode sair de casa e a ajuda não chega, as pessoas me procuram. Faço exatamente como meu pai me ensinou”, justifica.

A dona de casa defende que o mais importante é fazer o bem aos outros sem esperar nada em troca. “Nem poderia ser diferente. Já alcancei tantas graças que só tenho a agradecer. Não me vejo no direito de cobrar nada de ninguém”, afirma. De acordo com a zeladora Maria Ruth Serrano, Rosinha é uma mulher atenciosa e batalhadora que possui muita força. “O trabalho dela é maravilhoso. Tá sempre preocupada com o próximo”, garante Ruth que a conhece há mais de 30 anos.

Segundo o marido Cido, o que também reafirma a solidariedade da esposa é o fato de nunca terem morado sozinhos. “Ela sempre trouxe alguém pra gente cuidar. Alguns eram parentes e outros não. Quase todos os irmãos dela já moraram com nós. Hoje cuidamos do meu pai. Torço para que ela nunca precise parar de fazer esse trabalho porque sei que é a maior satisfação da vida dela”, argumenta o vigilante.

“Nunca gostei de ficar à toa em casa”

Nascida em Salinas, no Norte de Minas Gerais, Dona Rosinha adotou Paranavaí como lar há 37 anos. “Já fiz de tudo na minha vida. Até trabalhei de doméstica e não me adaptei, retornando pra roça de café. Agora faço apenas trabalhinhos como confecção de rosários e crochê”, explica e acrescenta que atualmente a renda familiar é baseada no salário do marido e do filho.

A dona de casa, acostumada a realizar serviços manuais, foi obrigada a parar de trabalhar após o implante de um marca-passo. “Ninguém dá serviço para alguém nessa condição. Não sou aposentada. Já tentei três vezes e não consegui, nem mesmo pelo INSS. Por que os ricos se aposentam e eu não? Tem muita gente por aí aposentada sem necessidade”, desabafa.

A casa onde vive há dois anos no Jardim Ipê, e perto de uma igreja, foi conquistada com muito sacrifício, assim como praticamente tudo na vida de Rosinha. “Me empenhei para que meus filhos estudassem e hoje me orgulho de saber que se formaram na faculdade. Quando eram crianças, eu até trabalhava na escola pra garantir uma boa educação pra eles”, revela.

"Me empenhei para que meus filhos estudassem e hoje me orgulho de saber que se formaram na faculdade" (Foto: David Arioch)

“Me empenhei para que meus filhos estudassem e hoje me orgulho de saber que se formaram na faculdade” (Foto: David Arioch)

Por mais de dois anos, a rezadora fez trabalho voluntário na Santa Casa de Paranavaí. Assim que terminava os afazeres domésticos, ia até o hospital, onde dava banho e trocava as roupas dos enfermos. “Nunca gostei de ficar à toa em casa. Por isso passava horas na Santa Casa, ajudando principalmente aqueles que não recebiam visitas de parentes”, garante.

Com a proximidade do Natal, Dona Rosinha explica que está preparando um presépio feito de jornal dobrado, em forma de torre. Seguindo uma velha tradição, em vez de pintá-lo com tinta, ela vai colori-lo com carvão molhado. “Fazemos isso todos os anos e atrai muita gente. As pessoas pedem muitas orações, até quem não pode vir faz o pedido por telefone”, confidencia.

“Não tinha quase comida, só um pouquinho de arroz e feijão cru”

Aos 20 anos, quando trabalhava como boia-fria, Rosinha, acompanhada do pai e dos irmãos, percorria a pé 15 quilômetros de estrada de terra para chegar ao cafezal. Saía de casa às 5h, antes do galo cantar, quando a escuridão ainda tomava conta do lugar. “Um dia a gente tava em casa se preparando pro trabalho e não tinha quase comida, só um pouquinho de arroz e feijão cru. Minha mãe olhou nas panelas e ficou preocupada”, conta. Então sugeriu ao marido que pedisse um pouco de mandioca para o patrão, senão teriam de passar fome no dia seguinte.

No mesmo dia, às 9h, uma vizinha bateu na porta da casa de Dona Joana, mãe de Rosinha, e reclamou que seus três filhos estavam sem comer há três dias. Sensibilizada, Joana deu metade do arroz e do feijão cru já insuficiente para alimentar a própria família. Por volta do meio-dia, uma mulher desceu de um automóvel em frente à casa de Rosinha e bateu palmas, surpreendendo Dona Joana. “Naquele tempo era difícil ver carro em São Jorge do Patrocínio. Ela chamou minha mãe e mostrou um saco de estopa enorme cheio de alimentos. Tinha tanta coisa que a gente nem sabia o que era. Pra gente era comida de rico”, lembra Rosinha rindo e chorando.

Um homem que acompanhava a mulher posicionou o saco ao lado do pequeno portão da casa dos pais de Rosinha. No mesmo instante, o mais novo dos oito filhos de Dona Joana começou a chorar. Ela se desculpou e foi ver o que aconteceu com a criança. Quando retornou, a mulher não estava mais lá, nem o homem e o carro que a trouxe. “Minha mãe ficou desesperada. Queria agradecer de qualquer jeito. Ela correu toda a vizinhança tentando saber o paradeiro da mulher. Todos os vizinhos falaram a mesma coisa, que não viram carro nenhum passar por aquelas bandas naquela manhã. Então minha mãe chorou, se sentindo abençoada por Deus”, narra com olhos marejados.

Solidária, Dona Joana retirou apenas o essencial do saco de estopa e dividiu o restante com quatro famílias de boias-frias. O dia foi tão especial que até a jornada de trabalho dos que foram para o campo acabou mais cedo. “A gente sempre chegava em casa à noite, lá pelas nove horas, porque demorava pra arruar o café, mas naquele dia vimos o Sol desaparecer através da nossa janela”, relata Rosinha chorando.

“Senti mãos me pegando e me levantando”

Numa noite, Dona Rosinha sentiu tontura e não conseguiu dormir. Preocupados, o marido e os filhos a levaram para o Pronto Atendimento Municipal (PA), onde recebeu um pouco de soro intravenoso. Às 6h, a dona de casa deveria ir Arapongas, no Norte Central do Paraná, trocar o marca-passo que parou de funcionar, mas ninguém a chamou. Assim que levantou e olhou pela janela, já estava tudo claro lá fora. Então Rosinha deitou com os olhos fechados debaixo de uma lâmpada, pedindo a Deus que não deixasse nada de ruim acontecer com ela. “Senti mãos me pegando e me levantando. Fiquei com os olhos fechados porque não tive vontade de abrir. Quando fui colocada novamente na cama, abri os olhos e não tinha ninguém ao meu lado, como se ninguém tivesse entrado no quarto”, conta.

Depois a dona de casa se levantou e lembrou a enfermeira de que ela precisava ir a Arapongas trocar o marca-passo. “Veio uma equipe grande me ajudar. Na ambulância, durante toda a viagem, senti como se as mesmas mãos que não vi continuassem acariciando o lugar onde o marca-passo que não funcionava mais estava instalado. Sentia tudo, mas não via nada”, garante.

Após receber anestesia, Rosinha ficou sabendo que não havia condições de recuperar seu marca-passo, sendo necessário fazer a substituição. “Foi preciso fazer uma outra cirurgia de última hora pra trocar o marca-passo. A operação acabou tão rápido que até a equipe médica se surpreendeu. E eu ainda sentia aquela mão desconhecida no marca-passo”, assegura.

Ao final da cirurgia, a dona de casa foi avisada que precisaria de dois ou três dias de repouso para conseguir andar novamente. Surpreendendo todos, Rosinha levantou na manhã seguinte, andando por todo o quarto e se oferecendo para ajudar os pacientes deitados nas camas mais próximas. “O médico disse que nunca viu uma recuperação tão rápida. Dias atrás também tive um princípio de [acidente vascular cerebral] AVC, só que logo ficou tudo bem”, comemora com voz remansosa.

Frases de Dona Rosinha

“Seguindo as lições de meu pai e minha mãe, não consigo passar um dia sem ajudar alguém”

“Quando eu era criança, uma moça que era nossa vizinha tentou se matar. Ela tomou veneno cinco vezes e chegou até a beber soda e não morreu. Se não for a hora, não adianta insistir”

“Qualquer pessoa que aparece aqui pra eu cuidar, eu cuido, porque Deus me deu esse dom e eu sigo em frente”

Saiba Mais

Dona Rosinha, que também é procurada por pessoas de outras cidades e regiões, mora no Paraná há 53 anos. Quem quiser entrar em contato com ela, pode ligar para (44) 3045-7819.

Latinha, infância fragmentada pelo crack?

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O texto abaixo é o primeiro de uma série de publicações com o tema Personagens do Submundo de Paranavaí em que relato com ênfase na subjetividade humana as experiências de pessoas que mesmo solitárias e marginalizadas conseguiram reencontrar a sua humanidade.

Um garoto que superou abandono, violência, miséria, escravidão, vício e solidão

Latinha diante da própria fragmentação (Imagem: David Arioch)

Latinha, 13, é um garoto de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que se tornou dependente químico aos seis, época em que foi coagido pela primeira vez a fumar crack em uma lata de refrigerante. Ao longo de cinco anos, viveu sem qualquer perspectiva de futuro, vagando pelas ruas, onde um universo aterrador criado a partir de um caos alucinógeno o afastou da realidade, espoliando sua humanidade.

“Chega uma hora que você vira bicho, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso”

A violência

“Lembro que cheguei em casa e vi meu padrasto batendo outra vez na minha mãe com um porrete que guardava embaixo da cama. Ela sangrava e eu comecei a chorar e pedi pra ele parar”, narra Latinha. Encolerizado, o homem o perseguiu. Não o alcançou, então arremessou o bastão e atingiu a criança pelas costas.

O golpe violento jogou Latinha contra a parede. Sentiu tanta dor que se limitou a chorar, sem conseguir se mexer. “Minha mãe me mandou correr. Nem sei de onde tirei força pra levantar, mas fiz o que mandou. Voltei pra casa no dia seguinte. Não encontrei nada nem ninguém, só umas manchas de sangue no chão e perto da janela”, relata o garoto que era filho único e continuou morando na casa, sem saber o paradeiro da mãe.

A inocência

Quando criança, comia restos de alimentos que encontrava nas ruas

Latinha tinha cinco anos e estava sozinho no mundo, sem ter o que comer, sem outra roupa para vestir e sentindo muito medo de existir. Então começou a se alimentar dos restos de comida que encontrava em sacos de lixo. Em uma das andanças, conheceu o órfão Naldinho Caneta, 8. Os dois tornaram-se amigos e decidiram morar juntos na residência da mãe de Latinha, um casebre de três cômodos e sem mobília, com as paredes cheias de fissuras.

A dupla dormia sobre um chão forrado de papelão e jornal velho e não se importava em dividir o espaço com invasores como ratos e baratas. Também pegavam animais de rua e levavam para casa. Com a ajuda de Naldinho, latinha abrigou até 27 cães e 15 gatos durante algumas semanas em 2003. Ameaçados pelos vizinhos, os garotos tiveram de encontrar novos donos para os animais.

O trabalho

Dupla trafegava diariamente pela Heitor Alencar Furtado

Mesmo sem uma fonte de renda fixa, e vivendo às raias da miséria, não tinham o hábito de pedir esmolas. Para sobreviver, investiam na coleta de materiais recicláveis. O lucro era pouco, mas a dupla até que se divertia. “Só era ruim mesmo quando alguém roubava as nossas coisas. Não podia dar bobeira e deixar o carrinho sozinho”, lembra Latinha que em parceria com Caneta trafegava pela Avenida Heitor Alencar Furtado todos os dias.

Até escaparam da morte numa manhã de domingo, quando um motorista embriagado invadiu uma ciclovia próxima a entrada da Vila Operária e jogou o carro sobre a dupla. “Só puxo mesmo pela memória os raspões nas pernas e nos braços. O Naldinho foi jogado sobre uma calçada, mas conseguiu levantar, sem nenhum machucado, apesar de assustado e um pouco tonto. O motorista deu ré e se mandou”, afirma.

O castigo

Latinha e Naldinho receberam 50 chicotadas

Após o acidente, Latinha e Naldinho tiveram de mostrar ao proprietário o estado do carrinho usado no transporte de recicláveis. O homem conhecido como Lanterna alugava o veículo por uma diária de R$ 5. Os chamou para conversar no fundo do quintal. Lá, passou a mão em um reio, antes mergulhado num latão que tinha um líquido estranho, ardido e fedido. Ficaram com medo e tentaram correr. Não deu tempo.

Cada um recebeu cerca de 25 chicotadas e nos últimos golpes os garotos desmaiaram sobre o solo arenoso. Latinha acordou com as unhas cheias de sangue porque segurou com muita força no chão. “Sentimos tanta dor que fizemos até xixi e cocô”, revela e em seguida ergue a camiseta para exibir algumas marcas deixadas por Lanterna nas costas e no abdome.

Além da punição, Latinha e Naldinho tiveram de trabalhar de graça por três meses em uma carvoaria clandestina nas imediações de Porto Rico. O serviço era de segunda a segunda, durava umas 18 horas por dia e dormiam lá mesmo, do lado de umas pilhas de lenha e em cima de umas estopas sujas e rasgadas. Só tinham direito a duas refeições, quase sempre virado de feijão, e tudo era controlado.

A cegueira

Foram obrigados a trabalhar numa carvoaria ilegal

No último mês de trabalho na carvoaria, empreenderam fuga por uma erma estrada de chão. Só correram algumas centenas de metros até serem alcançados pelo filho de Lanterna. O rapaz os levou de volta até a carvoaria e não revelou o acontecido ao pai. No dia seguinte, se recusaram a trabalhar, então Lanterna decidiu puni-los. Os amarrou e esfregou em seus olhos um punhado de brasa enrolada num pano. Latinha ficou dois dias sem enxergar e chorou dia e noite. Quem sofreu mais foi Naldinho que por ser mais velho recebeu castigo dobrado. Só recuperou a visão depois de cinco dias. Nesse período, Latinha cogitou a possibilidade de serem mortos.

Quando perderam a visão, foram isolados em um chiqueiro. Eram alimentados às escondidas pelo filho de Lanterna que não concordava com a conduta do pai e os visitava com certa frequência. De vez em quando, escutavam o algoz reclamando e esbravejando algo como: “Seus lixos, não servem pra nada, nem o diabo vai querer duas pestes como vocês.”

 “O presente”

Latinha: “Pareciam pedacinhos de rapadura”

Antes de completarem três meses de trabalho na carvoaria, Lanterna prometeu um presente, algo que chamava de “Disneylândia” e “Terra da Fantasia”. Entregou aos dois um saquinho com pedrinhas que pareciam pedacinhos de rapadura. Falou para fumarem, salientando que dava uma sensação muito boa e espantava tudo de ruim.

Latinha e Naldinho se recusaram a experimentar. Com facão em punho, Lanterna gritou que ninguém sairia da carvoaria sem fumar pelo menos uma pedra. O homem improvisou um cachimbo com uma lata de refrigerante e os forçou a tragar. Na primeira baforada, até acharam que poderia ser bom. “A gente não tinha certeza da aparência do crack, nunca tinha visto de perto”, diz Latinha, argumentando que evitavam qualquer contato com dependentes químicos pelas ruas de Paranavaí.

Abandonados ao lado de um chiqueiro

As primeiras sensações após o uso da droga foram de prazer, bem estar e ligeira excitação. Logo que fumaram ficaram “ligados” e, com o coração célere, transpiraram e sentiram uma energia diferente. De repente, o mundo infantil se transformou. Naldinho ganhou pupilas dilatadas, mãos trêmulas e uma boca entreaberta. Na mesma noite, foram abandonados ao lado do chiqueiro, num chão ocupado por restolhos, cavacos queimados e fezes de animais. As costas estavam amortecidas por pneus velhos e sujos de graxa com as bordas embebidas em urina humana.

A degradação

Dias depois, retornaram à cidade. Não eram mais os mesmos. Estavam afundados em um universo de degradação. Na primeira semana alimentando o vício, Lanterna forneceu de graça as pedras de crack. Tudo mudou. Era preciso pagar R$ 5 por uma pedrinha minúscula. Então corriam atrás de bicos para continuarem comprando. Se passassem muito tempo sem a droga ficavam nervosos, em um estado que chamam de “noia”.

Comeram lavagem de porco em troca de R$ 10

A princípio, a dupla aceitava qualquer tipo de serviço para ter acesso ao crack, menos participar de atividades criminosas. Mesmo assim, não demorou para trocarem a dignidade pelo vício. Latinha se recorda do episódio em que comeram lavagem de porco e até insetos em troca de R$ 10. Deixaram marcar as mãos com ferro em brasa por causa de um “bagulho”. Aceitaram que um rapaz passasse com a moto sobre seus pés em troca de R$ 5 para cada. Quanto mais tempo ficavam longe da droga, mais se tornavam capazes de atos inimagináveis.

Meses depois, a dupla de sete e nove anos foi introduzida como “laranja” no narcotráfico local, transportando pequenas quantidades de drogas entre os bairros. Rodavam toda a cidade, atendiam as bocas de fumo do Jardim São Jorge, Campo Belo, Canadá, Morumbi, Simone, Vila Operária e outras áreas. À época, perceberam que em Paranavaí havia pessoas de grande poder aquisitivo investindo no tráfico de drogas. “Vi gente importante que bota banca de certinho e roda de carrão importado pela cidade envolvida nisso”, comenta.

As alucinações

Latinha: “Gostava de ver um mundo mais colorido e mais vivo”

Latinha teve muitas alucinações quando fumava crack. Algumas remetiam ao passado enquanto outras eram indecifráveis e surreais. Assegura que teve visões com quem perdeu contato há muito tempo, até pessoas falecidas.  O garoto gostava de ver um mundo mais colorido e mais vivo. O problema era quando o efeito passava. Ficava tudo preto, embaçado e sem vida, o que os motivava a fazer de tudo para continuarem usufruindo de um estado alucinógeno que chamavam de arco-íris. Divagavam com a ideia de um buraco se abrindo no chão e os puxando para dentro. “Tinha vez que o barato passava e eu me dava conta de que estava agarrado a um poste ou abraçado a uma placa, com o corpo tremendo”, confidencia.

Quando se drogavam, o mundo se fragmentava. Não sabiam se era dia ou noite, se estava frio ou calor. Acordavam em lugares desconhecidos ou dos quais não se recordavam mais. Por vezes, não reconheciam as pessoas e esqueciam até mesmo quem eram. “Chega uma hora que você vira bicho, rasteja pela sujeira e acha que está no paraíso. Depois começa a viver com medo e sempre que percebe alguém te olhando acha que estão te perseguindo, até mesmo os animais. O cheiro e o sabor das coisas perdem o sentido, deixam de existir. Não sobra nada, só um vazio”, desabafa Latinha enquanto mira o horizonte e ajeita o boné sobre a cabeça.

Imaginava um buraco se abrindo no chão e o puxando para dentro

Ato heroico I

Para Latinha, se não fosse por Naldinho Caneta dificilmente teria sobrevivido a tantas desventuras. A primeira foi em 2004, quando estava dormindo e deixou uma vela cair sobre o chão forrado com papelão. As chamas se alastraram pela casa. O pior foi evitado porque Naldinho tinha saído para procurar comida e retornou antes do esperado. Ao se deparar com o fogo, não pensou duas vezes antes de invadir o casebre. Com apenas oito anos, conseguiu abrir a porta, passou pelas chamas, pegou Latinha no colo e o levou para fora. Quando abandonaram a casa, os bombeiros ainda não tinham chegado. O mais surpreendente é que a dupla teve apenas queimaduras superficiais.

Ato Heroico II

Não foram poucas as vezes que Naldinho se envolveu em brigas para defender Latinha de outros menores de rua que o tentavam roubar e explorar. Aos 11 anos, Caneta colecionava cicatrizes pelo corpo. Eram marcas de pedradas, pauladas, garrafadas, chicotadas, até mesmo facadas. Apesar das dificuldades cotidianas, ainda despontava como um herói do submundo. O aposentado João Bosque da Silva, 78, se recorda de quando foi salvo por Naldinho.

Uma vela quase custou-lhe a vida

“Recebi a aposentadoria e estava descendo pela Avenida Salvador, perto do Terminal Rodoviário Urbano, daí uma turma de moleques veio pra cima de mim mandando entregar todo o dinheiro. Me recusei e então o maior me mostrou uma faca”, relembra o aposentado. Naldinho Caneta que estava em um terreno baldio ao lado escorou sobre o muro e arremessou pedaços de tijolos contra os garotos.

Enraivecidos, os infratores saltaram para o interior da propriedade. Nem imaginavam que estava lá dentro com um cão rottweiler. João Bosque ouviu o garoto falando para o animal atacar os invasores. Sem demora, Naldinho saltou o muro e correu, sem dar tempo do aposentado agradecê-lo.

A superação

Um dia, a dupla estava vagando pelo Centro de Paranavaí quando Naldinho viu o próprio reflexo em frente a uma vitrine de uma loja de roupas. Tirou de dentro do bolso uma foto um pouco amassada, suja e falou: “Tá vendo, Latinha. A gente é isso aqui e não aquilo ali. Não me vejo naquele vidro. Você se vê? Por que me sinto como se tivesse vivo na foto e morto aqui fora, sendo que todo mundo sabe que não existe vida num pedaço de papel? Que loucura, né? A gente tem que mudar, Latinha, viver aqui fora e não na foto.”

Na imagem tirada antes da dependência química, Latinha, 6, e Naldinho, 8,  aparecem descalços, mal vestidos e sujos. A maior diferença é que estão sorridentes e brincando em um lixão na Vila Alta, onde ao fundo se destaca um urubu sobre um sofá velho. Durante toda a entrevista, esse é o único momento em que Latinha treme e chora. Por instantes, se cala, segurando e observando a foto.

O sentimento de perda…

Após a autorreflexão em frente à loja, a dupla decidiu se afastar do crack. Nos quatro meses que se seguiram foi muito difícil, um teve de dar apoio ao outro, evitar recaídas. Perseverantes, Latinha e Naldinho superaram o vício. Abandonaram tudo que faziam para reconstruir a casa queimada. Saíram pelas ruas da cidade procurando crianças e adolescentes sem-teto.

Reuniram nove menores, entre andarilhos e jovens que sobreviviam se prostituindo. Durante o dia, percorriam as construções, pedindo restos de materiais. Recolhiam as doações com uma carriola velha, descascada e barulhenta, que tinha o pneu careca, já exibindo o arame. Cinco meses depois, terminaram a reconstrução e a ampliação da casa que ganhou três novos cômodos.

Os conflitos

No quintal, fizeram uma horta grande que mais tarde se tornou um negócio rentável. Uma parte da produção era vendida em mercearias e a outra destinada ao comércio ambulante. Logo surgiram conflitos internos, pois nem todos contribuíam. Enquanto alguns se empenhavam em trabalhar e transformar a casa em um ambiente melhor, outros passavam o dia sob a sombra de uma enorme mangueira.

Latinha e Naldinho tentaram resolver a situação. Não houve acordo e pediram que os moradores insatisfeitos deixassem a casa. Neemias, 17, Pardal, 16, e Bota, 16, nem discutiram, apenas observaram Naldinho e Latinha por segundos antes de partirem sem rumo, rindo do acontecido. Na manhã seguinte, quando a dupla estava prestes a sair para fazer as compras da semana, perceberam que todo o dinheiro economizado e guardado nos furos de duas lajotas recostadas ao muro da casa foi levado.

Latinha e os demais quiseram recuperar o dinheiro, mas foram impedidos. Naldinho chamou-lhes a atenção e justificou. “Eles precisam mais do dinheiro. Vamos entender isso como um pagamento pelo que fizeram aqui. Aquela quantia não significa nada perto do que a gente conseguiu.” Todos refletiram a respeito, só que não o suficiente para amenizar a raiva. Só desistiram de ir atrás do trio por causa da interferência de Naldinho.

Sob a sombra da mangueira

A covardia

Meses depois, em agosto de 2010, num final de tarde, Caneta empurrava pela Avenida Salvador, em direção ao Terminal Rodoviário Urbano, uma carriola onde levava um pouco de alface, almeirão e couve. Abordado por Neemias, Pardal e Bota, Naldinho encostou o carrinho de mão rente ao meio-fio. De acordo com o comerciante aposentado Geraldino Gonçalo, os três ordenaram que o garoto entregasse todo o dinheiro. Sem discutir, Caneta os observou atentamente e esvaziou os bolsos.

Insatisfeitos, Pardal e Bota tomaram-lhe a carriola, despejaram as hortaliças perto da guia e empurraram o garoto contra um muro branco, bem desgastado. Naldinho ergueu as mãos, sinalizando que não queria brigar, ainda assim Neemias sacou um revólver de calibre 32 que estava preso ao cinto. Disparou três tiros à queima-roupa contra o peito de Caneta que deslizou as costas pelo muro, caindo sentado, deixando um rastro vermelho.

 

Um projétil atravessou o corpo de Naldinho e atingiu o muro

O sangue de Naldinho, que contrastou com a pele bronzeada e a camiseta branca, cobriu de vermelho até o par de chinelinhos de dedo e se esvaiu pela calçada, se misturando à água e aos restos de alface, almeirão e couve que escorriam pela sarjeta. Gonçalo gritou por socorro e se aproximou logo que os garotos fugiram. “Ainda vi um fio de vida nos olhos daquele menino quando me aproximei. Cerrava os dentes cheios de sangue e olhava pro céu como se suplicasse pra não morrer. Lutou muito. Só que a ajuda demorou e ele não suportou. O pior é que eu e outras pessoas apenas assistimos ao acontecido, sem fazer nada. Tive vergonha de mim mesmo”, testemunha Geraldino Gonçalo.

O desespero

A carriola em que transportou o melhor amigo

Quando soube do acontecido, Latinha entrou em desespero e correu até o local do crime, onde mandou todos se afastarem. Em meio aos curiosos, pediu que alguém o ajudasse a colocar Naldinho sobre a carriola abandonada na esquina. Na versão de Latinha, ninguém o ajudou, então tirou a camiseta, forrou o interior do veículo e sozinho deitou o corpo de Caneta, já sem vida.  Empurrou o carrinho de mão até em casa, onde colocou Naldinho sobre a cama e passou a noite acordado, escorado sobre a janela, pensando, sem ter a mínima ideia do que fazer.

Antes do amanhecer, vestiu o amigo com a melhor roupa, enrolou o corpo em lençóis brancos e cuidadosamente o deitou em um buraco no quintal, ao lado de uma jabuticabeira, onde Naldinho e Latinha talharam os próprios nomes meses antes do assassinato. Enquanto suas lágrimas embaçavam a visão e umedeciam o solo, Latinha abriu uma caixa de madeira. Do interior, despejou centenas de canetas das mais variadas cores, tipos e tamanhos sobre o corpo do amigo.

O ritual

Estojo da Parker verde-nassau, a preferida

Eram itens de uma coleção iniciada anos antes. Naldinho as encontrou em buracos, lixões, tampas de galerias, calçadas, ruas, guias ou simplesmente descartadas por transeuntes nas lixeiras públicas. A preferida de Naldinho era uma caneta tinteiro Parker verde-nassau, de fabricação estadunidense, que já não funcionava mais, tirada da sarjeta em frente a um escritório de contabilidade. “Muitas vezes, antes de dormir, ele pegava essa caneta e ficava deitado de barriga pra cima dizendo que parecia uma joia de tão bonita. Sonhava em um dia conhecer a fábrica da Parker nos Estados Unidos. Toda caneta que encontrava, Naldinho trazia pra casa”, enfatiza Latinha que antes de enterrar o amigo colocou em sua mão a Parker verde-nassau.

O ritual com o punhado de terra

A cada pá de terra jogada sobre Naldinho, Latinha se sentia mais distante. Ao redor do amigo, os outros seis menores que viviam na casa se mantiveram cabisbaixos e calados. Não se pronunciaram nem quando Latinha esfregou contra o rosto e o peito uma ponta solta do lençol branco que cobria Naldinho. Antes de fechar o buraco, cavou com a mão um punhado de terra próximo da cabeça do amigo e o jogou contra o próprio corpo. Após o enterro, sem unção ou qualquer tipo de oração, Latinha se ajoelhou, manteve o rosto contra o solo, fez uma promessa e se levantou.

A decisão

Depois de refletir, previu que não tardaria até a Polícia Militar e o Conselho Tutelar aparecerem na residência. Sugeriu que os outros procurassem uma morada provisória. Sozinho, Latinha foi até a casa de um conhecido que vivia no Jardim São Jorge e lhe devia favores. Pegou emprestado um revólver de calibre 380 e outro de calibre 38. Guardou as armas dentro de uma mochila recheada de munição e saiu noite afora, a pé e solitário, guiado pela escuridão que o inebriava a ponto de não sentir as pedras que se fixavam na sola fina de um velho tênis All Star, presente de Naldinho.

Passou três dias sem dormir, como um errante, carregando nas costas o que chamou de senso de justiça. O “saco de chumbo” o impedia de ter sono. Era o peso da consciência por não ter previsto o que aconteceria com Naldinho. Latinha sentia a mochila leve somente quando imaginava a morte de Neemias, Pardal e Bota.

Se preparando para um banho de sangue, passava o dia todo pensando apenas em ver as vidas dos inimigos se esvaindo diante de seus olhos. “Tudo precisava ser feito bem devagar, na mesma intensidade da dor que causaram. Pra mim, não restava mais nada. Eu tinha todo o tempo do mundo pra dar cabo daqueles vermes”, rememora, reproduzindo o sentimento da época.

Os encontros

Quatro dias depois da morte de Naldinho Caneta, Latinha finalmente encontrou Neemias, Pardal e Bota. Os três estavam deitados em volta do tronco de uma mangueira no fundo de uma casa abandonada no Jardim Ipê. O garoto invadiu o local com cautela. Se aproximou um pouco, abriu a mochila, sacou o revólver de calibre 32 que já estava carregado e o engatilhou. “Meu dedo coçava de vontade de atirar. Ao mesmo tempo, eu tremia e meus olhos pareciam em chamas”, admite.

Prestes a dar o primeiro disparo, Latinha conta que em meio ao clima abafado surgiu uma brisa que o fez sentir calafrios por todas as extremidades do corpo. Repentinamente, abaixou a arma e caminhou em direção a Neemias. Nenhum dos três estava acordado e Latinha percebeu que naquele ambiente apenas os poucos movimentos dos galhos e das folhas da mangueira inspiravam vida. Parte do cal virgem fixado ao tronco da árvore se desprendeu e deslizou com sutileza em direção ao chão, onde repousavam os três garotos.

O cal que deslizou pelo tronco

Quando o cal tocou os primeiros fios de cabelo de Neemias, Pardal e Bota, que pareciam alinhados na mesma posição, Latinha os arrastou um a um até a sombra de uma jabuticabeira livre da caiação, onde ramagens de alfazema perfaziam uma pequena trilha. Àquela altura, o cal já tinha coberto os cachimbos de crack improvisados com tubinhos de caneta que adornavam a mangueira. “Tinha uma poça d’água do lado da árvore com as mesmas cores que formam um arco-íris”, sublinha.

Minutos depois, colocou o revólver de volta na mochila e partiu sem acionar o gatilho nenhuma vez. Devolveu a munição e as armas emprestadas e fez o trajeto de volta para casa. No caminho, quando descia pela Rua Antônio Felipe, reconheceu a fisionomia de um idoso que empurrava um carrinho de frutas. Era o avô com quem perdeu contato aos quatro anos. Latinha ficou um pouco receoso, mas arriscou uma aproximação e se apresentou.

A alvorada, o prefácio da esperança

De olhos marejados, o idoso soltou o carrinho e, com as mãos trêmulas, abraçou o neto, de quem não tinha notícias desde 2001, ano em que o padrasto de Latinha o ameaçou e exigiu que não os procurasse. “Ele estava usando a mesma boina cinza de quando o tinha visto pela última vez”, acrescenta o garoto que contou ao avô João Bosque da Silva tudo que passou desde o último contato. Naquele dia, unidos pelo acaso ou destino, os dois partiram juntos na alvorada, sob um auspício de esperança.

Curiosidades

O apelido Latinha surgiu por causa da habilidade como coletor de latinhas.

O sonho de Naldinho era um dia tornar-se escritor, o que justificava o seu carinho e esmero por canetas.

Por algum tempo, a casa de Latinha ainda serviu de abrigo para andarilhos e sem-tetos, até que novos conflitos fizeram com que tomassem a decisão de alugar o imóvel.

Latinha, que é apontado como um dos melhores alunos do colégio onde estuda, nunca mais soube da mãe e até hoje mora com o avô, o seu responsável legal.

A proibição de bebidas alcoólicas em 1927

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Quando o álcool foi banido de Paranavaí pela Braviaco

Braviaco pertencia a Geraldo Rocha e Landulpho Alves (Foto: Reprodução)

Em 1927, a entrada de bebidas alcoólicas foi proibida na Vila Montoya, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, medida que foi mantida até 1930, ano em que a concessão da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), subsidiária da Brazil Railway Company, foi revogada pelo presidente Getúlio Vargas.

Quando a Braviaco começou a construção de 110 quilômetros de estrada em 1926,  ligando as imediações dos rios Pirapó e Paranapanema à fazenda que receberia o nome de Vila Montoya, os diretores da Braviaco, Geraldo Rocha e Landulfo Alves, foram informados que muitos de seus trabalhadores tinham o costume de consumir bebidas alcoólicas todos os dias. Por isso, tomaram a decisão de impor uma lei baseada na palavra para impedir a entrada de álcool na região de Paranavaí. Quem fosse flagrado bebendo era despejado e mandado embora.

A iniciativa foi colocada em prática em 1927, quando cerca de seis mil pessoas, somando centenas de famílias, viviam na colônia, em áreas que hoje pertencem ao Jardim Ipê, Jardim Iguaçu e Jardim Ouro Branco. A medida que tinha um caráter de “diplomacia rural” não foi bem recebida por todos os migrantes, inclusive alguns optaram por deixar o povoado afirmando que não valia a pena trabalhar em um lugar sem poder pelo menos tomar uma dose de cachaça no fim do dia.

Como havia dezenas de capangas na fazenda, ninguém é capaz de afirmar se aqueles que abandonaram a Vila Montoya chegaram aos seus destinos. “A proibição da entrada de bebidas alcoólicas na região foi uma providência salutar”, disse o engenheiro agrônomo Joaquim da Rocha Medeiros em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás. Medeiros era funcionário da Braviavo e coordenava o trabalho da companhia na região.

“O veto não atrapalhou muito, mas teve gente que partiu para outras cidades do Paraná e do interior de São Paulo. Penso que a ideia de proibir o álcool era pra evitar todos os tipos de problemas. Depois de umas pingas, o peão ficava agitado, com o sangue quente e, como a vida já era difícil, qualquer coisinha era motivo pra coçar a mão e arrancar a faca da cintura”, avaliou o pioneiro cearense João Mariano.

A proibição de bebidas alcoólicas em Montoya durou cerca de três anos. Ainda assim, alguns tinham acesso ao álcool. “Como era um produto proibido, saía mais caro, mas a gente sabe que até os jagunços da fazenda davam um jeito de arrumar a bebida para a ‘peãozada’. Claro que não era todo mundo que bebia, mas alguns nem que fosse de vez em quando conseguiam uma pinguinha sim”, enfatizou.

Sede da Vila Montoya na década de 1920 (Foto: Reprodução)

“Quando se aproximou, viu um cadáver apodrecendo”

Como não havia autoridades policiais o suficiente para cuidarem dos seis mil moradores do Distrito de Montoya, a Braviaco costumava intervir, pensando em ações que evitassem conflitos entre os colonos. Nem sempre dava certo, tanto que em 1927, o álcool já havia trazido como consequências muitos desentendimentos e brigas entre os trabalhadores.

“Tinha peão que ia trabalhar alcoolizado, assim arrumava confusão com extrema facilidade. São problemas que já existiam. Para a Braviaco, não era uma questão humana. A maior preocupação era que caso alguns se matassem, isso poderia afetar a produção de café, exigindo novos colonos para substituir os que morriam. É claro que eles não iriam se queixar disso, mas quem viveu aquela época sabia que o que importava pra eles era o lucro”, desabafou Mariano.

Havia três policiais para garantir a segurança dos moradores da Vila Montoya. Eram profissionais que nem sempre iam até as áreas de conflito, mesmo após alguns crimes. De acordo com João Mariano, não foram poucas as mortes em meio aos cafezais. “Tive um compadre que uma vez estava cruzando a roça e sentiu um mau cheiro perto de um pé de café. Quando se aproximou, viu um cadáver apodrecendo embaixo de um monte de folhas e galhos pequenos”, revelou. O homem ficou com medo e não contou nada a ninguém. No dia seguinte, a “consciência pesou” e ele voltou ao mesmo lugar. Para a surpresa do colono, já tinham removido o corpo.

“Como havia uns rastros de sangue no chão, meu compadre foi pedir informação pra polícia, só que como quem não quer nada. Falaram que fazia tempo que não acontecia nenhum crime por essas bandas”, confidenciou o pioneiro João Mariano, denunciando que os policiais contribuíam na ocultação de crimes para não comprometer a imagem da companhia. É importante lembrar que as bebidas alcoólicas foram banidas até 1930, quando a Braviaco teve de se retirar do distrito, sob ordem do presidente Getúlio Vargas que revogou a concessão de terras em represália ao apoio prestado ao  político Júlio Prestes.

Saiba Mais

A Vila Montoya pertencia ao município de Tibagi, no Centro Oriental Paranaense.

Quando a Brasileira entrou em decadência

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Na década de 1930, o progresso de Paranavaí foi comprometido pelo esvaziamento populacional

Tourinho retomou áreas da Brasileira para o Estado (Foto: Reprodução)

Decreto criado pelo Governo do Paraná em 1931, limitando a quantidade de terras a 200 hectares por pessoa ou família, desestimulou colonizadores a ficarem na Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Alguns deixaram o povoado quando souberam que a colonização seria supervisionada pelo governo estadual. Para os oportunistas, era algo que poderia comprometer a exploração da mão de obra barata. Por isso, vários contratantes convenceram muitos colonos a partirem. A consequência foi o esvaziamento populacional.

Em 8 de abril de 1931, o interventor e general Mário Tourinho, ciente da onda de crimes na Fazenda Brasileira, assinou decreto retomando as terras da localidade para o Estado e autorizando o início dos loteamentos da então futura Paranavaí. Por essa atitude há quem responsabilize Tourinho pelo início da decadência da Brasileira, já que as terras sob controle do governo estadual trouxeram a Paranavaí uma enorme burocracia. Pioneiros afirmam que a morosidade para se conseguir um terreno fez muitos moradores irem embora para outros povoados, locais onde o acesso à terra era mais fácil.

Outros defendem que o decreto afastou muitos colonizadores porque estes viviam da exploração dos colonos nordestinos, vistos como mão de obra barata pelos pioneiros do Sul e Sudeste. “A informação de que o governo acompanharia de perto tudo que acontecia na colônia intimidou muita gente”, relata o pioneiro cearense João Mariano. Alguns proprietários rurais tentaram convencer os colonos a irem embora com eles, fazendo promessas de melhor remuneração e também de boas condições de trabalho.

A situação era tão ruim que muitos colonos trabalhavam apenas para comer e ainda assim ficavam endividados. “Quando o sujeito ia até a venda acertar as contas era informado que estava em débito, então além de não ter condições de viver com dignidade, ele não podia ir embora porque corria risco, já que estava devendo. O patrão sempre dava um jeito de endividar o empregado”, relata Mariano.

Manoel Ribas (ao centro) veio para a Brasileira em 1933

Em 1933, o interventor Manoel Ribas visitou a Fazenda Brasileira. Naquele tempo, o acesso ao povoado só era possível por uma estrada que findava no Rio Paranapanema. Para facilitar o contato com as outras colônias e cidades do Paraná, além de diminuir a influência paulista na localidade, Ribas pediu que o engenheiro Francisco Natel de Camargo iniciasse a abertura de uma nova estrada que começava em Arapongas, no Norte Central Paranaense.

Mesmo assim, nada impediu que a Brasileira sofresse um esvaziamento populacional, o que também comprometeu o progresso local. De um total de aproximadamente seis mil habitantes que viviam aqui em 1930, não restaram nem 500 para dar conta dos mil alqueires de pés de café.

Período obscuro perdurou até 1944

A falta de mão de obra estimulou outros a irem embora, e logo parte do cafezal foi coberto pelo mato. Aqueles que continuaram aqui aproveitavam para colher o que podiam. Transportavam até Presidente Prudente, onde o produto era comercializado. Muitos cafeeiros foram plantados onde estão localizados o Cemitério Municipal (ao lado do Colégio Unidade Polo), Colégio Estadual de Paranavaí (CEP) e Jardim Ipê.

À época, havia centenas de casas no Jardim Ouro Branco, mas muitas foram abandonadas com o passar dos anos. A situação piorou com o início da Segunda Guerra Mundial e as sanções que o Governo do Paraná impôs às colônias, inclusive com relação ao transporte de pessoas, cargas e animais.

Estrada Boiadeira ligava o povoado ao resto do Paraná

Em 1939, o capitão Telmo Ribeiro, que chegou ao povoado por intermédio do interventor Manoel Ribas, tentou atrair migrantes para a Fazenda Brasileira. A estratégia do capitão foi ordenar a manutenção da estrada aberta por Camargo. O resultado não foi o esperado. Apesar disso, o caminho se tornou atrativo para moradores de Guarapuava e Campo Mourão que percorriam longas distâncias a procura de gado abandonado.

Aqui foram arrebanhados centenas de animais, o que justifica o nome “Estrada Boiadeira”. Tudo isso aconteceu quando Paranavaí contava com mais de 300 alqueires só de pastagens, por onde o gado circulava com total liberdade. Em 1943, dez anos depois do Estado assumir a Inspetoria de Terras, não havia mais que 80 casas na Brasileira e o total de habitantes mal chegava a 500. Foi um período obscuro e de pouca produtividade que perdurou até 1944.