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O primeiro administrador de Paranavaí

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Hugo Doubek, o marceneiro que cuidou dos enfermos e tentou promover a paz na colônia

Família Doubek quando chegou a Paranavaí na década de 1940 (Foto: Acervo Familiar)

Família Doubek quando chegou a Paranavaí na década de 1940 (Foto: Acervo Familiar)

O curitibano Hugo Doubek foi o primeiro administrador de Paranavaí e mesmo tendo deixado o distrito em 1948 fez muito pela população local ao longo de cinco anos.

A viagem

Em 1943, o marceneiro Hugo Doubek estava participando de uma exposição de artes em Curitiba quando conheceu o diretor do Departamento de Geografia, Terras e Colonização (DGTC) do Governo do Paraná, Antonio Batista Ribas. O diretor convidou Doubek para ser o administrador geral da Fazenda Velha Brasileira, então o marceneiro aceitou. Hugo Doubek já conhecia a Brasileira, onde trabalhou desmanchando casas em algumas áreas para reconstruí-las em outros pontos.

Paranavaí na época em que era administrada por Hugo Doubek (Foto: Yolanda Winche)

Acompanhado da mulher e de cinco filhos, o marceneiro viajou de trem até Marques dos Reis, distrito de Jacarezinho, no Norte Pioneiro Paranaense. “Lá, pegamos um trem até Londrina, onde ficamos hospedados na casa do inspetor de terras”, relatou Hugo Doubek em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás. Por causa de uma grave sinusite, o marceneiro teve de passar por uma cirurgia de emergência.

Dias depois, já recuperado, seguiram viagem de caminhão até Maringá, distrito de Mandaguari, onde pararam em um barracão para descanso de viajantes. Levaram mais de três horas para achar a saída do distrito, quase um labirinto por causa da mata primitiva que cercava o povoado. “A próxima parada foi em Cala Boca [atual Mandaguaçu], onde a estrada parecia um campo de batalha cheio de trincheiras”, avaliou o pioneiro, acrescentando que em alguns trechos, as rodas desapareciam, cobertas pelo solo arenoso.

Muitas vezes, Doubek teve de descer do caminhão e procurar galhos para desenterrar as rodas. E para piorar a situação, não havia nenhuma moradia na estrada. “Nem riacho para mitigar nossa sede”, comentou. Chegaram à Brasileira em dia chuvoso e se instalaram em um barracão que se tornaria sede administrativa da colônia. “Onde hoje está Paranavaí, quando cheguei aqui era só um capoeirão, uma densa mata cheia de rastros de onça”, destacou Hugo Doubek.

Antonio Batista Ribas (segundo da esquerda para a direita) quem deu ao pioneiro o cargo de administrador da colônia

Os conflitos

Quando se mudou para Paranavaí, o pioneiro tomou algumas precauções. Trouxe uma espingarda de calibre 16 e dois revólveres: um winchester e um H.O., de calibre 38, para garantir a própria segurança e a dos familiares. Na colônia, o administrador teve de resolver conflitos de grilagem de terras.

Sobre o assunto, há algumas décadas, o pioneiro admitiu que no início cometeu injustiças por acreditar que o reclamante sempre tinha razão. A situação só melhorou quando Doubek ponderou que seria melhor ouvir todos os envolvidos antes de tomar uma decisão. Em casos mais graves, o administrador contava com o apoio do sargento Marcelino, o chefe de polícia do povoado. “Naquele tempo, isso aqui parecia um acampamento de ciganos. Era feliz quem tinha uma lona e podia armar uma barraca”, enfatizou o administrador.

Na época em que a colônia era dividida em glebas e cada uma somava 15 mil alqueires, Hugo Doubek foi designado a percorrer o povoado a pé até as margens dos rios para localizar todos os moradores. ”Lembro que a 2ª Gleba começava a 10 quilômetros da área urbana e tive que percorrer 20 quilômetros para achar os primeiros colonos”, revelou.

Primeira sede administrativa de Paranavaí (Acervo: Fundação Cultural)

Primeira sede administrativa de Paranavaí (Acervo: Fundação Cultural)

Os enfermos

Ao assumir a administração da colônia, Doubek teve de lidar com a falta de assistência médica. O marceneiro costumava cuidar dos enfermos com chás de ervas, álcool, água oxigenada, pomada Riclei e ataduras que trouxe de Curitiba.

Certa vez, o administrador atendeu um rapaz com um ferimento de oito centímetros causado por um galho. A ferida estava cheia de pus e tinha odor de carne em decomposição. “Havia sido infeccionada por mosca varejeira”, explicou o marceneiro que submeteu o rapaz a um tratamento a base de creolina. Em um mês, o ferimento cicatrizou.

Outro caso nunca esquecido por Hugo Doubek foi de um jovem que carregava um machado sobre o ombro quando estava atravessando um tronco sobre um riacho (pinguela). “O rapaz caiu e se feriu. Como sangrava muito, seus companheiros queimaram um chapéu de feltro e colocaram o chumaço sobre o ferimento, parando o sangue”, disse o pioneiro.

Doubek fez curativos no ferimento do rapaz todos os dias até ele se curar. Segundo o marceneiro, para não desanimar ninguém era preciso fazer semblante doce mordendo maçã azeda. Muitas pessoas foram tratadas pelo pioneiro, principalmente moradores que contraíam doenças, como malária e leishmaniose, além de peões que se machucavam na derrubada de árvores.

A partida

Hugo Doubek deixou Paranavaí com a família em 1948, quando, por motivos nunca declarados, pediu transferência para Curitiba. Alguns pioneiros supõem que a partida do marceneiro foi motivada por pressão política do capitão Telmo Ribeiro, que era o líder local do Partido Social Democrata (PSD). “Aqui houve muita alegria, mas depois que começou a política, eu desgostei muito. Tive muita tristeza e até medo”, ressaltou a pioneira fluminense Palmira Gonçalves Egger.

Em apenas dois anos morando na colônia, Hugo Doubek viveu a transição da Fazenda Velha Brasileira para Paranavaí. De acordo com pioneiros, um nome que ajudou a escolher. Além disso, o marceneiro tentou promover a paz na colônia, realizando acordos entre os moradores e também salvando muitas vidas quando ainda não havia nenhum médico em Paranavaí.

Curiosidade

O pioneiro era o responsável por investigar as causas das mortes que aconteciam na colônia.

Hugo Doubek foi o primeiro inspetor de terras de Paranavaí, depois substituído por Ulisses Faria Bandeira.

Frases dos pioneiros sobre Hugo Doubek

Enéias Tirapeli

“A maior autoridade aqui era o Hugo Doubek.”

“Para conseguir terra tinha que ligar na casa do Hugo e esperar um tempo para eles cortarem o terreno.”

Izabel Andreo Machado

“Quando cheguei aqui só tinha umas três ou quatro casas, e uma era do chefe da colônia, o Hugo Doubek.”

José Alves de Oliveira (Zé do Bar)

“Acho que foi o Hugo Doubek e o Ulisses Faria Bandeira que colocaram o nome de Paranavaí.”

“Quando a gente fazia o requerimento de terras para o Hugo Doubek, ele dava mais ou menos 42 alqueires para cada famíllia.”

1945: Epidemia de leishmaniose ataca Paranavaí

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Surto de úlcera de Bauru matou dezenas de moradores

Doubek: “Atendíamos até cinquenta pessoas por dia” (Foto: Revista Saúde Pública)

Em 1945, muitos não escaparam da epidemia de leishmaniose tegumentar americana (LTA), conhecida como úlcera de Bauru, que atacou Paranavaí, no Noroeste Paranaense. A doença vitimou dezenas de pessoas em um período de grande carência médica.

Naquele ano, os moradores de Paranavaí ocupavam não mais que 40 casas, todas feitas de tábuas, e a única coberta por telhas era a residência usada como sede administrativa. Paranavaí ainda era sertão, tanto que animais campestres como veados-campeiros eram vistos todos os dias, até mesmo em frente as portas das casas. “Aqui era um lugar lindo porque era tudo mata. Não existia nada, mas tinha muito mosquito”, comentou o pioneiro paulista Salatiel Loureiro em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás.

Em meio as belezas de um tempo em que o homem interagia diariamente com a natureza, surgiu na colônia um surto de leishmaniose tegumentar americana (LTA). Segundo o pioneiro Hugo Doubek, em entrevista à prefeitura há algumas décadas, a epidemia de úlcera de Bauru se alastrou muito rápido. Como não havia médicos e nem enfermeiros em Paranavaí, Doubek se viu obrigado a lidar com os enfermos. “Tive até que adquirir prática em aplicar injeções na veia. Felizmente, foi enviado um enfermeiro, Eurico Hummig, que exercia a função de guarda sanitário em Curitiba”, lembrou o pioneiro que foi administrador da colônia.

Na década de 1940, a leishmaniose foi classificada pelo Governo Federal como doença da margem de mata. A proximidade de Paranavaí das áreas florestais facilitou a disseminação da doença que tem como transmissor o mosquito-palha. “Que luta tivemos! Atendíamos até cinquenta pessoas por dia. Na época, o médico José Pedro Vicentini tinha pedido exoneração e foi substituído por Aguilar Arantes. Devo dizer que ele fez milagres”, frisou Hugo Doubek, acrescentando que o médico não descansou enquanto não encontrou o medicamento certo para curar os doentes.

A situação era tão alarmante que até mesmo o governador Manoel Ribas veio a Paranavaí buscar os enfermos para levá-los a Curitiba. Dentre os doentes estava o pioneiro paulista João da Silva Franco que se recusou a ir para a capital receber tratamento médico. “Me tratei aqui mesmo porque não podia deixar minha mulher e minha filha sozinhas. O problema é que quem não queria ir para Curitiba era expulso de Paranavaí. Ameaçaram fazer isso comigo”, relatou. Tal atitude refletiu o medo e a desinformação da população, pois LTA é uma doença infecciosa que não é contagiosa, de acordo com o Ministério da Saúde.

João Franco: “A gente lavava as feridas com água de peroba e de guaiçara” (Foto: Revista Saúde Pública)

Doença deformou moradores

Quando adoeceu, João Franco contou pelo menos 18 feridas grandes pelo corpo. Segundo o pioneiro, só não apareceram úlceras no rosto. “Tinha na barriga, nas costas, nas pernas e nos braços. Por muita fé em Deus, me sarei. Resisti por natureza forte”, explicou.

Nem todo mundo teve a sorte do pioneiro paulista. Mais de 90 portadores de leishmaniose, entre adultos e crianças, foram levados de caminhão para Curitiba. “Daqueles que foram pra lá, alguns voltaram vivos, mas outros morreram”, enfatizou João Franco.

Em pouco tempo, foram registradas dezenas de mortes em decorrência da úlcera de Bauru que não só causava lesões cutâneas como deformava o rosto, impedindo o enfermo de se alimentar ou desempenhar qualquer outra atividade. “Muitas pessoas, até crianças, ficaram com os narizes e orelhas deformados. O que a gente mais fazia era lavar as feridas com água de peroba e de guaiçara. A situação era difícil porque Paranavaí era uma ilha isolada na mata virgem”, disse Franco.

O pioneiro paulista José Ferreira de Araújo, conhecido como Palhacinho, declarou que a assistência médica era precária. “O Estado tinha mania de mandar uns médicos incompetentes pra cá. Alguns vinham porque queriam pegar uma beira lá”, reclamou. João da Silva Franco faz coro às palavras de Araújo. “Vivemos no mato por mais de 20 anos. Era muito difícil porque não havia tratamento de espécie alguma”, desabafou.